Sergio Casoy Ópera

Trajetórias

Anotações sobre um século de ópera brasileira

11/01/2010

Em 12 de setembro de 1911, a cidade de São Paulo registrou o primeiro dos inúmeros engarrafamentos de trânsito que se tornariam uma das suas características mais comuns nos anos vindouros. A fila de automóveis proveniente da Rua Barão de Itapetininga topou com os carros que vinham do Viaduto do Chá, trancando a movimentação dos veículos que desciam a atual Xavier de Toledo e a Conselheiro Crispiniano. Este caos wagneriano com epicentro na Praça Ramos de Azevedo tinha uma razão nobre de ser. A elite paulistana – só a elite andava de automóvel naqueles anos – tentava chegar a tempo de testemunhar na íntegra o espetáculo de inauguração do majestoso edifício recém-construído que passara a dominar a praça, e em cujo frontão, em baixo relevo, estava gravado seu nome, dali para frente sempre pronunciado com orgulho e respeito pelos paulistanos: THEATRO MUNICIPAL.

É verdade que, como quase tudo que se faz por aqui, a abertura das portas da nova casa de ópera paulista para o público, apesar dos oito anos gastos em sua construção, aconteceu sem planejamento. Cronistas menos elegantes diriam que foi feita a olho, ou melhor, no tapa. A obra foi entregue em agosto de 1911 e o prefeito, o Barão Raimundo Duprat, viu-se com um problemão nas mãos. Após a dinheirama consumida na construção, não tinha nada com o que abrir o teatro, para o qual a municipalidade não previra a formação de uma orquestra e de um coral estáveis – e muito menos um espetáculo de inauguração. Era preciso fazer algo com urgência, antes que a opinião pública se manifestasse contra. O prefeito, célere, formou uma comissão de inauguração com alguns vereadores. Os comissários, após inúmeros – e improdutivos – debates, jogaram a bomba nas mãos do empresário teatral Celestino da Silva, que sabia das coisas e localizou Titta Ruffo na vizinha Argentina. Ruffo, o maior barítono do mundo, havia montado uma companhia de ópera na Itália e excursionava pelas plagas sul-americanas. Convidado via telégrafo, aceitou vir inaugurar o Municipal com sua ópera favorita, Amleto, versão italiana do Hamlet, de Thomas.

A companhia de Ruffo se apresentou no novo teatro entre 12 de setembro e 1º de outubro, com catorze funções de oito óperas nada fáceis. Além do já citado Hamlet, durante aqueles dezoito dias subiram ao palco Il Barbiere di Siviglia, de Rossini, Manon Lescaut, La Bohème e Madama Butterfly, de Puccini, Rigoletto, de Verdi, Don Pasquale, de Donizetti, e a versão italiana do Tristan und Isolde, de Wagner. Temporada para ninguém botar defeito e que hoje, mesmo durante um ano inteiro, seria impossível repetir.

No total, considerando também as produções de 1911 dos outros teatros de São Paulo, o São José (dezessete títulos) e o Politeama (nove), de montagens provavelmente muito simples e não novas, São Paulo pôde assistir, naquele ano, à bagatela de 34 óperas diferentes. Quase meio século depois, em 1957, dois anos após a reinauguração do Municipal, que passara por uma grande reforma, a casa apresentou 28 óperas diferentes.

Em nossos dias, os números, se comparados com os anteriores, são decepcionantes. Em 2007, entre o TMSP, o Theatro São Pedro e os espaços menores do Sesc Pinheiros e Teatro Paulo Eiró (que apresentaram uma ópera cada um), tivemos catorze títulos encenados, número que cai para um total de treze – seis no São Pedro, sete no Municipal – em 2008.

Por que este decréscimo? A resposta é simples. A razão reside nas mudanças, tanto do conceito de produção de ópera ao longo do século XX quanto da atitude do público em relação ao espetáculo, cujo corolário imediato foi a elevação dos custos de fazer ópera, sempre um freio severo às produções.

Titta Ruffo e seus colegas saltimbancos – entre os quais havia nomes legendários como o tenor Alessandro Bonci e o soprano Graciela Pareto – trouxeram literalmente as óperas prontas dentro de seus baús de viagem.

Quando uma companhia lírica itinerante partia da Itália, devia estar muito bem preparada. Além dos cantores principais, faziam parte do grupo de viajantes todos os músicos da orquestra com seus instrumentos, um ou dois maestros – com Ruffo veio Edoardo Vitale – e o pessoal do coro e da dança. Figurantes, camareiras e costureiras também subiam ao navio. A companhia trazia da Itália todas as partituras de orquestra e os cenários e elementos de cena das óperas que pretendiam apresentar. Estes cenários não deviam ser muito complexos, talvez pouco mais do que telas de pano pintadas, montadas sobre estruturas de madeira, mas funcionavam. Até os figurinos do coro vinham de casa.

Era, portanto, um caso curioso de teatro de repertório ambulante, cuja agilidade permitiu, como vimos, criar-se de improviso a temporada inaugural do Municipal com toda aquela variedade.

A aludida temporada de 1957 funcionou aproximadamente dentro do mesmo esquema. O TMSP abriu suas portas, de abril a dezembro, a vários empresários, que trouxeram a São Paulo desde um grupo de óperas de câmara de Buenos Aires até uma companhia de óperas alemãs – vieram todas com seus próprios cenários, figurinos e maestros –, a cujos espetáculos se intercalaram as récitas das óperas tradicionais produzidas pela casa. Para essas últimas, já tínhamos aprendido parcialmente com o exemplo da companhia lírica de Ruffo como administrar cenários. Embora não fosse um teatro de repertório, o Municipal dispunha de um depósito onde armazenava as produções até que se deteriorassem. Assim, se alguém se dispunha a reencenar algum título – e isso era mais comum do que se pensa, em função do gosto do público dos anos 1950 – era só tirar a poeira dos elementos cênicos e erguê-los no palco. Um cenário de Madama Butterfly, desde que tivesse a casinha no centro e a indefectível pontezinha do lado direito do palco, podia ser utilizado por anos a fio sem que ninguém se incomodasse com isso. Era até mais confortável essa ausência de novidades. Dava para prestar mais atenção nos cantores.

Naqueles anos – e esta foi uma postura que durou até a década de 1960, aproximadamente –, o freqüentador do teatro de ópera queria mesmo era ver os…

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