Sergio Casoy Ópera

Histórias da Flauta Mágica

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HISTÓRIAS DA FLAUTA MÁGICA

Sergio Casoy

Naquela palpitante Viena dos últimos anos do século XVIII, poucos artistas foram tão populares quanto Emanuel Schikaneder. Extremamente versátil, era capaz de levar o público às lágrimas com sua magnífica interpretação de Hamlet e, no dia seguinte, tomar parte numa comédia de baixo nível arrancando gargalhadas dos espectadores. Além disso, sua bela voz de barítono lhe assegurara certo sucesso como cantor lírico. Nas horas vagas, escrevia peças teatrais e libretos de ópera. Ao mesmo tempo, conduzia com bons resultados a atividade de empresário teatral e não demorou a conquistar a classe média vienense pela alta qualidade visual de seus espetáculos, recheados de efeitos especiais obtidos a partir do uso pródigo de maquinarias de palco sempre atualizadas. Essa característica levou o público de Viena a cunhar um neologismo bem-humorado – Schikanederei – para definir o estilo aparatoso daquelas produções.

Schikaneder não era, entretanto, superficial. Levava o teatro sério muito a sério, era um ator e produtor comprometido com a cultura, encenando e estrelando com regularidade dramas de autores como Goethe, Lessing, Calderón de la Barca, Beaumarchais e Shakespeare.

Nascido Johann Joseph Baptist Schikaneder na cidade bávara de Straubing em 1751, ele tinha apenas 22 anos quando, mudando seu prenome para Emanuel, conseguiu emprego como ator itinerante numa pequena companhia teatral que apresentava farsas, revistas musicais e singspiele, o típico espetáculo alemão que combina diálogo falado com música lírica. Seu talento floresceu. Pouco tempo depois, escreveu sua primeira opereta, na qual ele mesmo cantou, e passados apenas cinco anos, após um período atuando em Munique, fundou sua própria companhia itinerante. Durante 1780, ele fez uma longa temporada em Salzburg. Foi aí que conheceu Wolfgang Amadeus Mozart.

Quando sua jovem esposa Eleonore o abandonou, Schikaneder mudou-se para Regensburg, onde assumiu a direção do Teatro Nacional Alemão. Para matar as saudades dela, passou a consolar-se com as principais artistas que contratava. A intensidade com que se dedicou a esta prazerosa atividade terminou por granjear-lhe uma certa fama de Don Juan local.

Frau Schikaneder havia deixado o marido para viver um idílio com Johann Friedel, então concessionário de um pequeno teatro situado no Wieder, um dos mais antigos distritos dos arredores de Viena, criado em 1137 nas proximidades do Danúbio.

Esse teatro funcionava dentro do Freihaus, um famoso conjunto arquitetônico datado de 1647, assim chamado porque, ao construí-lo no enorme terreno que comprara no Wieder, seu proprietário, Conrad Balthasar Von Stahrenberg, recebera do governo total isenção de impostos. Ao redor de 1780, a “Casa Livre” tinha em suas dependências 93 moradias, treze lojas, quatro hospedarias, uma escola de dança, oito oficinas, um jardim enorme e sua própria capela. O teatro, em funcionamento desde 1776, foi totalmente reconstruído em 1787, já sob a eficiente direção de Friedel, passando a ser conhecido como Der Theater auf der Wieden.

Nesse meio tempo, o destino, numa brincadeira de mau gosto, pregou uma peça inesperada na ex-senhora Schikaneder. Após pouco tempo de convivência com ela, Johann Friedel morreu. Devia desconfiar que sua saúde não andava lá muito bem, pois se preocupou em deixar um testamento em que legava os direitos sobre o teatro à companheira. Com apenas 25 anos, Eleonore, assustada com o tamanho do fardo que herdara, agiu de maneira admiravelmente pragmática: escreveu a Schikaneder oferecendo-lhe o posto de Friedel. Apesar de Emanuel não lhe servir como marido, a ex não podia pensar em ninguém melhor como sócio e diretor do teatro do que ele.

O imperador José II, que desejava criar uma tradição de singspiel na capital de seu império, confirmou pessoalmente a nomeação de Schikaneder. Em 1789, aos 37 anos, o artista-empresário mudou-se definitivamente para Viena e iniciou a melhor fase de sua carreira.

Já ligado à maçonaria em Regensburg – embora seguidamente advertido por sua conduta libertina –, ao chegar a Viena Emanuel continuou a freqüentar a agremiação, retomando, naquelas reuniões, a amizade com Mozart, o qual também fazia parte da fraternidade.

Em princípios de 1790, Schikaneder pressentiu nuvens negras no horizonte. O caixa do teatro estava sem fundos, e a bancarrota se aproximava a passos largos. Para salvar o Auf der Wieden – e a própria pele – ele percebeu que o único meio seria conseguir um enorme sucesso de bilheteria, um espetáculo bonito, com ótima música orquestral e vocal, cuja história tivesse componentes mágicos que lhe permitiria usar efeitos especiais nos quais, como vimos, era especialista.  Para ampliar o público, buscando-o nas várias camadas da sociedade vienense, era forçoso que o idioma utilizado fosse compreendido por todos. A peça deveria ser em alemão. Tudo levava, portanto, à criação de um novo singspiel. Assim nasceu Die Zauberflöte. Em maio daquele mesmo ano, Schikaneder convidou Mozart que, como de costume, necessitava desesperadamente de dinheiro, para compor a música.

Cônscio da grande responsabilidade do projeto, Schikaneder reservou para si próprio a redação do libreto, embora hoje se saiba que ele foi ajudado pelo libretista e diretor de palco da companhia, o também maçom Karl Ludwig Giesecke, cujo nome, entretanto, jamais constou dos créditos.

Entre as múltiplas fontes que Schikaneder consultou para preparar o texto de A Flauta Mágica, a mais utilizada foi a novela Sethos, escrita em 1731 pelo francês Jean Terrasson. A parte inicial da novela descreve a iniciação príncipe egípcio Sethos, o herói da história, nos mistérios de Isis e Osíris e fornece a base para as provas que Tamino tem de enfrentar na ópera. A primeira ária de Sarastro, O Isis und Osiris (Oh Isis e Osíris), e o dueto Der, welcher wandert diese Strasse (Aquele que percorre estes caminhos), cantado pelos homens em armaduras, têm o texto praticamente copiado da tradução alemã da novela de Terrasson.

A cena inicial da ópera, desde o salvamento através das três damas até o surgimento de um estranho ser semi-humano tem origens bem mais antigas. Schikaneder foi buscá-la na narrativa Yivain ou Le Chevalier au Lion, escrita por Chrétien de Troyes no século XII, que, recentemente, havia sido traduzida para o alemão.

A primeira idéia para a utilização de instrumentos mágicos no argumento da nova ópera veio de Oberon, König der…

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