Sergio Casoy Ópera

As andanças do Cavaleiro do Cisne

Lohengrin, de Wagner

03/05/2010

AS ANDANÇAS DO CAVALEIRO DO CISNE
SERGIO CASOY
Nun sei bedankt, mein lieber Schwan! Agradeço-te, meu amado Cisne!
Zieh durch die weite Flut zurück Regressa, cruzando as distantes marés,
dahin, woher mich trug dein Kahn, De onde me trouxe teu barco
kehr’wieder nur zu unserm Glück! Torna a voltar para dividirmos nossa felicidade!
Drum sei getreu dein Dienst getan! Cumpriste fielmente tua missão!
Leb wohl, leb wohl, mein lieber Schwan! Adeus, adeus, meu amado Cisne!
Entrada de Lohengrin – Ato I
Acompanhado de seu cãozinho de estimação Peps, do papagaio Papo e de sua esposa Minna, Richard Wagner chegou à estação de águas de Marienbad no dia 3 de junho de 1845 e se hospedou na Pension zum Kleeblatt. Aconselhado pelo médico, concedera-se um período de cinco semanas de férias para uma cura termal naquela famosa estância hidromineral da Boêmia. Aos 32 anos, estava à beira de um esgotamento nervoso causado pelo excesso de trabalho. Além de suas incessantes atividades como kapellmeister em Dresden, onde, após ter reorganizado a orquestra e os coros, regia óperas, concertos e missas enquanto programava festivais, agravara seu estado de exaustão o extraordinário esforço para completar, nos momentos livres, a composição da nova ópera Tannhäuser, que estrearia em outubro no Teatro Real da Corte da Saxônia.
Mas Wagner não conseguiu relaxar por muito tempo, pois sua imaginação, sempre acelerada, não lhe dava trégua. Em sua autobiografia, Mein Leben (Minha Vida), ele anotou:
“Decidido a passar aqueles dias da maneira mais tranqüila possível, tinha levado a Marienbad somente leituras fáceis, que se estendiam desde os poemas de Wolfram von Eschenbach difundidos por Simrock e San Marte, até a epopéia anônima de Lohengrin, com a vasta introdução de Goerres. Com um livro embaixo do braço, eu penetrava na floresta todas as manhãs; depois, deitado nas proximidades de um riacho, eu me distraia na companhia de Titurel e Parsifal, personagens desconhecidos, e contudo tão familiares a Wolfram. Rapidamente, o desejo de atribuir um formato pessoal a todas essas revelações se tornou tão imperioso que tive grande dificuldade em dominá-lo. Tinham-me recomendado que me afastasse de qualquer atividade excitante durante o período de tratamento: mas um nervosismo crescente se apoderou de mim. De improviso, o personagem de Lohengrin se apresentou, armado, diante de meus olhos. Ao mesmo tempo, delinearam-se, em minha mente, todos os particulares da forma dramática que deveria ser atribuída àquele argumento: a lenda do cisne agitou imediatamente minha imaginação, despertando uma atração irresistível”.
Wagner já conhecia a história de Lohengrin. Ele a tinha lido durante sua primeira estada em Paris, no final de 1841, numa revista editada em Königsberg chamada Historische und literärische Abhandlungen der Königlichen Deutschen Gesellschaft (Tratados Históricos e Literários sobre a Real Sociedade Alemã). Na ocasião achou a fábula banal e desprovida de interesse. Mas quatro anos depois, em Marienbad, passou a encará-la com outros olhos. Compor uma ópera sobre o tema transformou-se aos poucos numa obsessão, a ponto de Wagner, que escrevia seus próprios libretos, ter esboçado o roteiro compulsivamente ainda durante as férias, como ele mesmo nos conta:
“Eu tinha apenas entrado no banho termal, ao redor do meio-dia, quando o desejo irresistível de musicar Lohengrin tornou a assaltar-me violentamente. Incapaz de transcorrer sequer mais um momento dentro da água, precipitei-me imediatamente para fora e, vestido sumariamente, corri como um louco para o meu quarto, para começar a escrever o esboço em prosa do poema que tinha em minha mente. Este fato se repetiu nos dias subseqüentes até que, em três de agosto, a inteira narração da nova ópera foi completada”.
Ao voltar a Dresden, Wagner procurou refinar seu trabalho inicial, tornando-o historicamente mais consistente. Para tanto, debruçou-se com afinco sobre um grande número de obras que aludiam, com variações de época e lugar, ao mito do misterioso cavaleiro que chega em um barco conduzido por um cisne a fim de salvar uma donzela em perigo, desposa-a e é obrigado, por uma força maior, a partir para sempre no dia em que ela, cheia de dúvidas, quebra sua promessa e lhe pergunta seu nome e sua origem.
Entre esses livros estavam três importantes escritos do século XIII: Der Jüngerer Titurel (O Jovem Titurel), de Albrecht von Scharfenberg, Der Schwanritter (O Cavaleiro do Cisne), de Konrad von Würzburg, um dos últimos expoentes da literatura alemã de cavalaria, e Parzival, de Wolfram von Eschenbach, que, como vimos, Wagner havia levado consigo para Marienbad. Pertencente aos ciclos do Graal e arturiano, essa saga faz, em seu final, uma rápida menção ao cavaleiro Loherangrin, o filho de Parzival, enviado do castelo do Graal em auxílio da jovem duquesa Elsa de Brabante. Wagner leu também textos flamengos e franceses da Idade Média e lendas sobre a origem das casas de Cleves e Bouillon, às quais voltaremos mais adiante.
De todas essas narrativas extraiu várias passagens, que combinou e modificou até que o libreto definitivo de seu Lohengrin viesse a exprimir a interpretação pessoal que ele atribuía àquela antiga lenda. Em seu Eine Mitteitlung an meine Freunde (Uma Comunicação a Meus Amigos), escrito em 1851, Wagner deixa claro que a trágica situação do personagem-título na ópera representa a solidão do artista no mundo contemporâneo, causada pela incompreensão dos que o circundam. Lohengrin simboliza a encarnação de um ser superior, milagroso, que tenta sem sucesso inserir-se no mundo comum.
Num brilhante ensaio sobre Lohengrin, o Dr.Karl Schumann, respeitado crítico musical alemão, analisou a fundo as associações que Wagner estabeleceu nessa ópera:
“Lohengrin, o Cavaleiro do Cisne e filho de Parsifal, corporificou quatro conceitos aparentemente divergentes: a figura divina em forma humana que desce à Terra (Wagner admitia a similaridade com o mito Zeus-Sêmele); o artista romântico que em meio aos ‘claros e sagrados reinos do éter’ almeja a ‘doce sombra do amplexo de uma amante mortal’ (Tragik des Lebenselement der modernen Gegenwart,, o cavaleiro paladino da virtude que, tanto nos mitos da Antiguidade (Perseu) como nos da Idade Média (São Jorge), salvava donzelas em terríveis dificuldades….

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