Sergio Casoy Ópera

A CRIAÇÃO DE NORMA

10/06/2011

Em uma das noites de abril de 1828, durante as encenações de sua ópera Bianca e Fernando no Teatro Carlo Felice de Gênova, Vincenzo Bellini visitou a Marquesa Lomellini em seu camarote e foi apresentado a Giuditta Cantù Turina.

Foi como atirar palha ao fogo. Vincenzo, aos 27 anos, não soube – nem quis – resistir às apaixonadas promessas daqueles olhos faiscantes, grandes e profundos, tão negros quanto os cabelos de sua dona. Ela era apenas dois anos mais nova do que Vicenzo, e aos dezesseis se havia casado sem amor com um riquíssimo comerciante de sedas com o qual não tivera filhos.

 Giuditta e Vincenzo iniciaram um tórrido caso de amor. A ela, Bellini dedicou a partitura de La Straniera, estreada em 1829. E a seu lado, em puro idílio sob o clima ameno do Lago de Como, encontrou inspiração suficiente para compor La Sonnambula. O estrondoso sucesso que este novo melodrama alcançou ao estrear no Teatro Carcano de Milão em março de 1831 inscreveu o nome de seu autor no panteão dos grandes compositores italianos, além de abrir-lhe as últimas portas para o convívio com a alta sociedade milanesa.

         Filosoficamente complacente, o excêntrico Ferdinando Turina, marido de Giuditta, sabia de tudo o que se passava entre Vincenzo e sua esposa. Entretanto, fez questão absoluta de convidar o compositor para completar o grupo que se hospedaria em sua propriedade rural de Casalbuttano, nas vizinhanças de Cremona, para passar o verão de 1831.

Bellini podia viajar tranqüilo, pois já tinha trabalho assegurado para a volta das férias. Assinara um vultoso contrato comprometendo-se a compor uma nova ópera para a inauguração da temporada do Teatro Alla Scala de Milão, fixada – como ainda acontece hoje – para 26 de dezembro, dia de Santo Stefano, e já naquela época um dos eventos mais importantes do mundo lírico europeu. Essa escolha nos dá a medida exata do prestígio que Bellini granjeara entre os milaneses. No contrato, ele se comprometia a escrever música que respeitasse as características vocais dos membros da companhia de cantores escolhidos pelo teatro: o baixo Vincenzo Negrini, o tenor Domenico Donzelli, o soprano Giulia Grisi, e como prima-dona, o famoso soprano Giuditta Pasta, que embora tivesse triunfado em Paris, Londres, Viena e Milão – fora a criadora de La Sonnambula no Teatro Carcano – ainda não cantara no Scala.

Antes de partir em veraneio, Bellini pediu a seu libretista, Felice Romani, que pesquisasse possíveis argumentos para a nova obra.

Romani e Bellini eram amigos íntimos. Tinham sido apresentados pelo compositor Savério Mercadante em 1827, assim que Bellini se mudara para Milão em busca de novas oportunidades para seu talento. Embora tivesse vivido algum tempo em Nápoles após deixar sua Sicília natal, Bellini era ainda ingênuo, de modos um tanto rústicos, e seu trato social deixava um pouco a desejar. Foi Romani, homem de profunda cultura, que chamou a si a tarefa de orientar o jovem Bellini e introduzi-lo na sociedade milanesa. A partir de Il Pirata, estreada ainda em 1827 no Scala de Milão, escreveram sete óperas em conjunto.

Felice Romani foi o libretista mais importante de sua época. Poeta inspirado, excelente profissional, procurava manter-se sempre atualizado. Acompanhava atentamente a vida teatral de Paris, fonte inesgotável de argumentos para óperas, recebendo com regularidade, naqueles anos em que os direitos autorais não existiam, os textos das novas peças que iam surgindo na capital francesa. Entre elas, Romani não hesitou em escolher uma tragédia recém-estreada, Norma ou L’Infanticide, da autoria do respeitado dramaturgo Alexandre Soumet, cujo nome os estudiosos de ópera conhecem por ter sido co-libretista de La Siège de Corinthe de Rossini.

Ambientada entre os druidas da Gália Transalpina à época da invasão de Julio César, a Norma de Soumet narra o romance proibido entre a sacerdotisa do título e um oficial romano que depois a abandona por outra. Para vingar-se, Norma mata os filhos que tivera com o romano, e enlouquecida de remorso, se suicida atirando-se do alto de uma montanha. De roupagem ainda neo-clássica, mas com conteúdo já romântico, a tragédia transformou-se numa das favoritas das platéias parisienses desde sua estréia no Théâtre Royal de l’Odéon em abril de 1831, com Madame Georges, famosa atriz, no papel-título.

Várias resenhas vêem na habilidade de Soumet em entretecer três núcleos temáticos que eram familiares aos espectadores de então o principal motivo para a excelente acolhida da peça. O primeiro deles – a mãe que assassina os próprios filhos como vingança por uma traição amorosa – tinha raízes na clássica tragédia grega de Eurípides, Medéia, cuja história foi várias vezes adaptada e transformou-se no argumento de duas óperas francesas chamadas Médée, compostas respectivamente por Marc-Antoine Charpentier (1693) e Luigi Cherubini (1797).

Depois, vinha o tema da sacerdotisa consagrada que rompe seus votos por um amor secreto e proibido, popularizado a partir de 1807, quando a ópera La Vestale, de Gasparo Spontini, estreou em Paris. Segundo seu libretista Etienne de Jouy, o argumento também provinha de uma fonte clássica, pois se baseava num evento ocorrido em 269 A.C. no templo da deusa Vesta em Roma. À época do surgimento de Norma, a estima do público por Julia, a heroína de La Vestale, continuava intacta enquanto a ópera atingia a marca das duzentas representações só em Paris.

Em terceiro lugar, tão caro aos franceses daquele período, havia o motivo temático de entorno celta, descrevendo os antigos ritos praticados nas profundezas das sagradas florestas dos druidas. Basta examinar o décimo livro do romance épico Les Martyrs (1809), de François-Renée de Chateubriand para encontrarmos, além da descrição das plantas e dos espíritos mágicos que povoam os bosques gauleses, a pequena história da sacerdotisa druida Velléda, que depois de se apaixonar por um romano, corta a própria garganta com sua foice de ouro. Como se vê, a Norma de Soumet nasceu com tripla personalidade, influenciada ao mesmo tempo por Medéia, Julia e Velléda.

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