Sergio Casoy Ópera

Notas sobre Der Rosenkavalier

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NOTAS SOBRE DER ROSENKAVALIER
Sergio Casoy
Segundo um antigo costume da nobreza austríaca, o Cavaleiro da Rosa era, na Viena da Imperatriz Maria Teresa, o jovem de alta linhagem que tinha o encargo de representar um pretendente de sangue azul num pedido de casamento. Para formalizar o compromisso, o Cavaleiro deveria entregar, sem a presença do proponente e em seu nome, uma rosa de prata à noiva. Sua aceitação representava o estabelecimento do compromisso matrimonial.
O único problema com esta tradição, tão aristocrática e tão elegante, é que ela jamais existiu. Na vida real, nunca nenhuma moça foi pedida em casamento em Viena mediante a entrega de qualquer flor reproduzida em qualquer metal.  A figura do Rosenkavalier foi uma criação brilhante do cérebro de Hugo Von Hofmannsthal para, em torno dela, construir o libreto da quinta ópera de Richard Strauss, uma das comédias mais originais e requintadas que se conhece.
A associação Hofmannsthal-Strauss não é, na História da Ópera, a primeira vez em que o encontro fortuito entre um compositor e um poeta geniais tem obras-primas como resultado. Nos primórdios do barroco, já Claudio Monteverdi e Giovanni Busenello haviam se unido para criar L’Incoronazione di Poppea. Durante o classicismo, Mozart e o poeta Lorenzo da Ponte conceberam a trilogia Le Nozze di Figaro, Don Giovanni e Così fan tutte. O final do romantismo italiano viu dois gigantes, Verdi e Arrigo Boito, produzirem juntos Otello e Falstaff. E poucos anos depois, a dupla de libretistas Luigi Illica e Giuseppe Giacosa aliou-se a Giacomo Puccini na criação de três das óperas mais representadas do planeta, La Bohème, Tosca e Madama Butterfly.
Mas nenhuma dessas ligações profissionais foi tão profícua e duradoura quanto aquela entre o aristocrático poeta vienense de origem judaica, dotado de alto senso estético, e o compositor bávaro, burguês e materialista, cuja franqueza e atitudes chegavam a ser grosseiras. Hofmannsthal e Strauss conheceram-se em 1905, quando o segundo, impressionado com Elektra, a peça de teatro escrita a partir do mito grego pelo primeiro, associou-se a ele para transformar o drama na ópera de mesmo nome, que estreou em janeiro de 1909.  Embora suas personalidades e sua forma de ver a vida fossem diametralmente opostas, trabalharam juntos em harmonia durante 24 anos, compondo seis obras-primas em forma de ópera.  A feliz co-participação foi bruscamente truncada pela súbita morte de Von Hofmannsthal em julho de 1929.
Der Rosenkavalier foi a segunda experiência da dupla, composta entre abril de 1909 e setembro de 1910, e estreou – no Hofoper de Dresden – a 26 de janeiro de 1911. Segundo consta, logo depois da prèmiere da Elektra, Strauss declarou que “da próxima vez, escreverei uma comédia mozartiana” e pediu a Hofmannsthal que lhe fizesse um libreto. A idéia começou a tomar forma a partir das conversas que Hofmannsthal teve com o conde Harry von Kessler, diplomata e editor extremamente culto que o recebeu durante alguns dias em sua casa de Weimar. Foi Kessler quem sugeriu ao poeta fazer uma colagem de episódios de diversas fontes sem aparente relação entre si. Após escrever a Strauss informando que esboçava uma comédia completamente diferente, em que haveria uma parte para baixo bufo e um papel para um personagem inspirado no mozartiano Cherubino de Le Nozze di Figaro – um adolescente sedutor interpretado por uma mulher, para o qual sugeria os sopranos da moda Geraldine Farrar ou Mary Garden –, Hofmannsthal mergulhou na pesquisa. Na comédia Monsieur de Pourceaugnac, de Molière, encontrou o modelo do Barão Ochs, que vem à capital procurar uma jovem esposa, e também o do casal de escroques italianos Annina e Valzacchi; do romance de Louvet de Couvray Les Aventures du Chevalier de Faublas, nasceu a idéia da mulher madura com um amante quase adolescente, a Marechala e Octavian. Já a divertida cena em que Octavian, travestido em roupas femininas, se apresenta a Ochs como a criadinha Mariandel, é inspirada em Mägera und die fortchterliche Here (Megera e o povo da floresta), comédia do vienense Philip Haffner. A idéia da entrega da rosa de prata veio da fonte mais original de todas: Hofmannsthal simplesmente adaptou um costume do papa que, ao final de cada ano, enviava rosas de ouro a destacadas damas da corte romana. Também de Molière, retirado do final de Le Bourgeois Gentilhomme, é o texto original em italiano, sem tirar nem por uma palavra, da ária Di rigori armato. A única diferença é que a ária, cantada originalmente por um soprano, na ópera é confiada ao tenor italiano que vem pedir emprego à Marechala.
Hofmannsthal pretendia, inicialmente, ambientar a comédia na França do século XVII. Mas mudou-se de mala e cuia para a Viena do século seguinte quando descobriu, fascinado, um diário escrito pelo príncipe Johann Joseph Khevenhüller-Metsch, que durante 1742 e 1749 servira como mordomo da Imperatriz Maria Teresa. Recém-publicado, esse Tagebuch aus der Zeit Maria Theresias vinha recheado de todas as fofocas e bisbilhotices possíveis e imagináveis da aristocracia vienense do século XVIII. Pronto. Hofmannsthal tinha agora encontrado a moldura ideal para o quadro que havia desenhado. Ambientar a ópera na Áustria lhe permitiu, culto como era, além de citar en passant uma série de figuras reais e fazer referencias a fatos e locais facilmente identificáveis, atribuir sutilezas de linguagem a cada personagem, distinguindo suas categorias sociais através das palavras empregadas e do tipo de dialeto alemão-vienense que falam.

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