Sergio Casoy Ópera

La Zarzuela del Niño

20/06/2010

Desde aquela vez em que um pastor chamado Moisés levou as ovelhas de seu sogro Jetro para pastar no monte Horeb e topou com um pé de sarça que, embora estivesse em chamas não se consumia – pudera, de dentro emanava, solene e assustadora, a voz de Deus –, este arbusto rosáceo cheio de espinhos, do qual brotam as amoras silvestres, assegurou seu lugar perene nas Sagradas Escrituras.

A espinhenta amoreira em questão parece ter sido muito comum na Espanha, onde é conhecida por zarza e também por seu diminutivo, zarzuela. Sabemos, por exemplo, que em meados do século XVII, havia, nas cercanias de Madrid, um bosque cerrado, formado por centenas de zarzuelas, numa área pertencente à coroa espanhola chamada Real Sitio de El Pardo.

Foi ali que o rei Felipe IV, para agradar seu irmão menor, o infante Don Fernando, mandou construir um novo palácio, ao qual fez chamar, buscando poética inspiração na vegetação da pequena mata vizinha, de Palacio de la Zarzuela. É o mesmo que, nos dias de hoje, serve de residência ao casal real espanhol.

A princípio, o infante usou o palácio como seu pavilhão de caça e recreação. Mas quando Fernando foi nomeado governador de Flandres e para lá partiu, o rei Felipe retomou o palácio e além de ir ali para caçar, passou a utilizá-lo como ponto de reunião de músicos e artistas de Madrid. Nos dias em que não havia caçadas, a Corte buscava diversão contratando companhias de cômicos, atores e cantores que lá se apresentavam para deleite dos nobres presentes, em encontros regulares que passaram a ser conhecidos como fiestas de zarzuela, já que sempre aconteciam naquele palácio.

 Assim como sua esposa, a rainha Mariana, o Rei Felipe IV amava a música. Amava também o teatro, particularmente o teatro musical barroco, cheio de efeitos. Sob sua influência pessoal, desenvolveu-se, para as fiestas de zarzuela – que não demoraram a ficar célebres – um estilo especial de encenação, que sempre intercalava canto e diálogo falado, uma nova experiência que se situava entre o teatro, o recital de canto e o sainete. Assim nasceu – tomando de empréstimo seu nome tanto das fiestas quanto do palácio que as abrigavam – a zarzuela, gênero que é a essência do teatro lírico espanhol.

O novo formato de espetáculo cresceu rapidamente em importância. Afinal, rei e rainha adoravam presenciar estreias, o que levava cada companhia convidada ao palácio a compor uma nova obra especialmente para a ocasião. O número de zarzuelas não demorou a multiplicar-se, e cada uma delas, após a apresentação inicial para os monarcas, seguia seu caminho de sucesso ou fracasso particular através dos teatros espanhóis.  

Os primeiros a escrever textos para o novo gênero foram dramaturgos ilustres do calibre de Lope de Vega e Pedro Calderón de la Barca. De autoria deste último, com música de Juan de Hidalgo, é a comedia Los Laureles de Apolo, de 1657, citada pelos estudiosos como a primeira das zarzuelas, embora esse termo, com o significado que adotamos, tenha sido utilizado pela primeira vez em relação a uma obra posterior, El Golfo de las Sirenas, do mesmo Calderón.

Se as primeiras zarzuelas buscaram inspiração na Itália tanto na música de compositores como Monteverdi quanto adotando argumentos da mitologia grega como faziam os libretistas italianos, não demorou muito para que o gênero encontrasse seu caminho definitivo dentro da riquíssima e diversificada tradição folclórica e popular espanhola, que, diga-se de passagem, a Corte recebeu muito bem nos anos sucessivos.

Após altos e baixos, a zarzuela atinge sua época de ouro em pleno romantismo, na segunda metade do século XIX. Esse entusiasmo criativo se estende com vigor até as vésperas da Guerra Civil Espanhola. A maior parte do repertório padrão encenado na atualidade foi composto nestas oito décadas.

A zarzuela, tal qual a conhecemos hoje – a definição está longe de ser perfeita –, é uma espécie de opereta caracteristicamente espanhola, embora algumas de suas árias, pela complexidade musical e dificuldade canora que apresentam, poderiam perfeitamente ser inseridas em óperas. Manteve, desde sua origem, a tradicional alternância entre partes faladas e canto. Segundo alguns estudiosos espanhóis, para que uma obra de teatro musical tenha o direito de se chamar zarzuela, ao menos parte de seu argumento deve se passar, como é o caso de El Niño Judio, em território espanhol, e conter algum número musical que se inspire no folclore de alguma região espanhola.

Embora desconhecido da grande maioria do público brasileiro, Pablo Luna, o compositor de El Niño Judio, foi um dos maiores musicistas de sua época na Espanha. Contemporâneo atento de uma geração de compositores que recebe o século XX com uma ousada e renovada linguagem musical – entre os quais se alinham na Espanha De Falla e Granados, e, fora dela, Debussy e Ravel, Mascagni e Puccini, Richard Strauss e Lehár –, Luna nasceu em 1879 em Alhama de Aragón mas cresceu em Zaragoza, onde aprendeu música e, ainda muito jovem, recebeu seu diploma de violinista, graduando-se em primeiro lugar de sua classe.  Jamais teve problemas em encontrar trabalho para ele e seu instrumento. Tocou em igrejas, café-concertos e hotéis. Teve suas primeiras experiências teatrais ao integrar uma pequena orquestra de câmara. Em 1900, aos 21 anos de idade, assumiu o posto de concertino titular da Orquestra do Teatro Circo de Zaragoza. Três anos depois, arriscou sua primeira composição, uma zarzuela não mal sucedida chamada Lolilla, la Petenera. Em 1905, Ruperto Chapí – o celebrado autor das zarzuelas La Revoltosa, El duo de la africana e Las Hijas de Zebedeo – convida Luna a mudar-se para Madrid e aceitar o posto de chefe dos segundos violinos do Teatro de la Zarzuela. Foi como levar um sedento à fonte. Ao lado de Chapí, Luna teve uma oportunidade de ouro de aperfeiçoar suas habilidades de compositor, que se tornaram evidentes em 1908, com o grande sucesso de Musetta, paródia que é considerada o marco inicial da opereta moderna na Espanha, e que nos mostra, entre outras coisas, como Puccini era popular em Madrid, algo que é…

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