Sergio Casoy Ópera

Gounod e os amantes de Verona

26/05/2010

GOUNOD E OS AMANTES DE VERONA

(Publicado, de forma condensada, no programa de Roméo et Juliette – Theatro Municipal de SP – Junho/2004)

Desde 1576, quando foi comprada pelo Cardeal Ferdinando de’ Medici, a imponente edificação cercada de lindos jardins que se ergue no alto da colina romana de Pincio passou a chamar-se Villa Medici. Quando Ferdinando deixou a batina e voltou para a sua Florença natal para tornar-se o Grão-Duque da Toscana, a propriedade de Roma passou a ser a residência oficial dos sucessivos cardeais que a dinastia Medici ofereceu à Cúria. Em 1803, um decreto de Napoleão Bonaparte fez com que a Villa Medici se tornasse a sede da Académie de France, instituição de belas-artes que o governo francês sempre manteve em Roma desde sua criação em 1666, durante o reinado de Luis XIV. Nessa época, o Rei-Sol havia criado um concurso muito importante para jovens pintores, arquitetos e escultores chamado Prix de Rome, cujos vencedores recebiam uma bolsa e iam para Roma estudar por alguns anos na Académie. A partir da mudança para a Villa Medici, o concurso passou a contemplar também jovens compositores. Os escolhidos passavam a residir na Villa e tinham por obrigação enviar a Paris uma nova composição a cada ano que vivessem em Roma. Ao examinarmos as biografias dos mais importantes compositores franceses do século XIX, constatamos que a maioria deles passou pela Villa Medici.

         Em 1837, Charles Gounod concorreu ao Prix de Rome, mas ficou em segundo lugar. Teimoso, voltou a insistir em 1839, venceu o concurso com uma cantata chamada Fernande e partiu para Roma aos vinte anos de idade. Parisiense, Charles havia nascido em 1818, numa família de artistas. O pai, grande desenhista e pintor de certa importância, morreu quando ele tinha cinco anos. A mãe, pianista de valor, sustentou a família dando aulas, mas mesmo assim encontrou tempo suficiente para ensinar ao pequeno Charles os rudimentos da música, o que estabeleceu entre ela e o filho uma ligação muito forte que durou toda a sua vida. Foi ao lado da mãe que Gounod assistiu a um espetáculo que lhe causou uma impressão profunda: o Don Giovanni de Mozart, a grande descoberta daqueles primeiros anos, que o faria decidir-se pela carreira de musicista.

         Em Roma, embriagou-se com música. Além de assistir a óperas de Bellini, Donizetti e Mercadante, o jovem estudante ficou fascinado pela música sacra. Tornando-se assíduo freqüentador das apresentações na Capela Sistina, descobriu Palestrina, cuja obra estudou em profundidade. Já se desenhava aí uma das características fundamentais da personalidade do futuro compositor, que durante toda a sua vida iria se dedicar com igual paixão ora à música litúrgica, ora ao teatro de ópera, alternando-se entre os dois extremos com a regularidade de um pêndulo. A cena da igreja em sua ópera Faust reflete bem o contraste dessas duas tendências.

         Foi na Villa Medici, em 1841, que Gounod trabalhou com o tema dos amantes de Verona pela primeira vez, tentando compor uma ópera – que não completou – sobre um libreto italiano chamado Giulietta e Romeo. Seguramente inspiraram-no as lembranças da Sinfonia Dramática Romeu e Julieta de Hector Berlioz, a cujos ensaios e estréia no Conservatório de Paris teve o privilégio de assistir em 1839 quando era aluno daquela instituição.

Berlioz baseou sua obra na famosa peça Romeo and Juliet (1596) de William Shakespeare, que já era tão célebre no século XIX quanto o é hoje. Isso às vezes oculta o fato de que, quando o dramaturgo inglês retratou, com seu brilhantismo habitual, a tragédia dos dois jovens que preferem a morte à separação, a história de Romeu e Julieta já era bastante conhecida na Europa, pois havia sido narrada por vários autores italianos anteriores.

         A primeira referência que encontramos é a de uma lenda medieval transmitida oralmente, recolhida por Masuccio Salernitano (1415-1476) em uma novela chamada I due amanti senesi. Os dois amantes de Siena, onde a história originalmente transcorria, chamavam-se Mariotto e Ganozza, ele filho de uma família guelfa e ela, gibelina. Guelfos e gibelinos foram dois partidos cuja rivalidade ensangüentou a Toscana durante décadas. Baseado nesse texto, o autor Luigi da Porto (1485-1529), um nobre de Vincenza, escreveu a Istoria novellamente ritrovata di  due nobili amanti, publicada dois anos depois de sua morte. Da Porto introduziu várias modificações na história, a mais importante das quais foi a de chamar os namorados, pela primeira vez, de Romeu e Julieta. Além disso, deslocou a narrativa para Verona e fez com que os dois jovens pertencessem a famílias que realmente existiram e que, em sua opinião, eram antagônicas. Para tanto, interpretou um verso contido no Canto VI da Divina Comédia (1321) de Dante Alighieri, no âmbito de uma crítica que o sumo poeta faz às mesquinhas rivalidades que dividiam a Itália:

 “Vieni a veder Montecchi e Cappelletti,

Monaldi e Filippeschi, uom senza cura!

Color già tristi, e costor con sospetti”.

(“Venha ver os Montecchi e os Cappelletti,/ Os Monaldi e os Filippeschi, homens sem cuidado! / Aqueles já tristes / e estes, suspeitosos”.)

            Em 1539, a novela de Da Porto, com leves modificações, foi publicada novamente, com o título mudado para La Giulietta. 

         Não sabemos ao certo em que ano Matteo Bandello (1485-1561), utilizando Bocaccio como modelo, publicou Novelle, uma coletânea de 214 narrativas. Mas sabemos que uma delas, cujo extenso título praticamente narra a história inteira, La sfortunata morte di due infelicissimi amanti che l’uno di veleno e l’altro di dolore morirono, con vari accidenti, retomava o tema de Romeu e Julieta. Como em 1550 Bandello tornou-se Bispo de Agen, teve a sorte de ver seu conto traduzido para o francês, forma na qual Pierre Boisteau o levou para a Inglaterra, onde se tornou muito popular e foi vertida para o idioma inglês por William Painter. Em 1562, Arthur Broocke reescreveu, com algumas variações, a história dos infelizes amantes e a publicou sob o título de The tragical historye of Romeo and Juliet. Foi esse poema a principal fonte utilizada por William Shakespeare.

         O drama dos amantes de Verona incendiou…

download do texto completo em PDF