Sergio Casoy Ópera

Fosca-A ópera dos entendidos

24/07/2010

A ÓPERA DOS ENTENDIDOS

Por Sergio Casoy

 (Escrevi Il Guarany para os brasileiros, Salvator Rosa para os italianos e a Fosca para os entendidos – Frase atribuída a Carlos Gomes)

    

        O Peri de Carlos Gomes foi provavelmente o primeiro índio guarani da História a falar, ou melhor, a cantar em italiano. Isto não impediu – pelo contrário, até ajudou – que a história musicada de suas peripécias e de seu romance com a suave Ceci, narrada em Il Guarany, a primeira ópera de Gomes escrita na Itália, fosse recebida com entusiasmo pelo público do Teatro Alla Scala de Milão em sua estréia em 19 de março de 1870.

Triunfante no templo máximo da ópera milanesa, Carlos Gomes resolveu enfiar a partitura na bagagem e matar as saudades do Brasil, de onde havia partido em dezembro de 1863 em busca de fama e fortuna sem jamais ter regressado. Queria e iria apresentar oficialmente seu Peri ao público do seu país. Mesmo antes de estrear no Teatro Lírico do Rio de Janeiro em 2 de dezembro de 1870, Il Guarany, precedido pelo eco dos aplausos que vinham da Europa, já havia reservado seu lugar perene no coração dos brasileiros.  

Após uma enxurrada de comemorações e homenagens sem fim, como atesta uma carta a seu amigo Carlo D’Ormeville, um dos libretistas de Il Guarany, contando que “perderam a cabeça!…os abraços, os beijos, beijões, apertos de mão de deixá-la dolorida, flores, presentes, bailes, soirées, serenatas, meu Deus, só faltou fazer uma Semana Santa em minha honra…”, Carlos Gomes percebeu que estava na hora de parar de festejar e voltar à Itália, para continuar na batalha de consolidação de sua carreira, que embora promissora, necessitava de mais óperas de sucesso para se firmar definitivamente.

De volta a Milão em abril de 1871, Carlos Gomes divide seu tempo entre namorar Adelina Peri, a professora de piano que ele conhecera ao visitar o Conservatório de Milão em 1864, e procurar um bom libreto para a próxima ópera. Com Adelina, casou-se rapidamente, em dezembro daquele mesmo ano, quando não era mais possível esconder sua gravidez. Já a ópera, que se chamaria Fosca, levou dois anos para ficar pronta, mas deu a ele muito mais alegrias que a vida de casado, culpa do próprio gênio difícil do compositor.

No momento em que regressou à Itália, Carlos Gomes deveria, por força de contrato assinado com a Casa Editora Lucca – a mesma que publicara Il Guarany -, concluir uma ópera sobre libreto do mesmo D’Ormeville, cujo título era Os Mosqueteiros. Querendo eliminar a aura de exotismo que o envolvia desde o sucesso de sua ópera indígena e que se acentuava por causa da cor escura de sua pele, Gomes havia concordado com o argumento na esperança de que um enredo bem sucedido de ambientação européia tivesse o condão de fazer com que os italianos passassem a aceitá-lo como um ser comum, igual a todos os outros habitantes de Milão. Mas o nosso autor não conseguia encontrar inspiração nem em Gabriella, a principal personagem feminina de Os Mosqueteiros, nem na trama semi-séria ambientada em Versalhes, recheada de mosqueteiros que, em vez de flechas e bacamartes, empunhavam floretes esguios e esgrimiam coreograficamente, enquanto jovens coquetes e sedutoras desfilavam pelos corredores do palácio. Gomes estava mais para paixões desenfreadas e atos de heroísmo do que para rapapés e rococós. Se examinarmos os fragmentos da partitura manuscrita que sobreviveram e hoje se encontram no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, poderemos constatar a extrema dificuldade que ele teve em abandonar o ambiente da selva brasileira do Guarany para entrar nos refinados jardins dos reis franceses.

Como faria tantas vezes no futuro, Carlos Gomes rompeu o contrato unilateralmente, sem nenhuma explicação. Informou à Casa Lucca que não mais comporia a ópera, e ponto final. O caso foi terminar nos tribunais. Não conhecemos os detalhes do acerto final entre compositor e editor, mas é muito provável que ambos tenham concordado com a substituição do argumento por algum outro que estimulasse a fantasia criativa do autor, fato no qual a origem de Fosca residiria.

Seja como for, a verdade é que Carlos Gomes se apaixonou pela novela La Feste delle Marie, Storia Veneta del Secolo X, publicada em 1869 pelo marquês Luigi Capranica, escritor cuja especialidade eram romances históricos passados na bota italiana, e resolveu transformá-la em ópera, batizando-a com o nome da principal personagem feminina, Fosca, a mulher-pirata. Nessa história forte de truculentos corsários, envolvendo raptos de noivas à porta da igreja, embate de vontades e disputa do mesmo homem por duas mulheres, Gomes encontrou toda a inspiração que lhe faltara no trabalho que abandonara inconcluso. Havia possibilidade de grandes momentos teatrais, e de música arrojada e moderna para sublinhá-los. Além disso, o entorno nada tinha de exótico quando se pensa no público a quem a ópera então se destinava. A história se passava em Veneza, a mesma Veneza que, com seu fascínio, fora pano de fundo para Otello de Rossini, Lucrezia Borgia e Marino Faliero de Donizetti, Il Bravo de Mercadante e I Due Foscari de Verdi, e que apenas três anos depois de Fosca hospedaria La Gioconda composta por Amilcare Ponchielli, o professor do Conservatório de Milão que foi amigo e vizinho de Carlos Gomes.

Para elaborar o libreto da Fosca, nosso compositor convidou o poeta Antonio Ghislanzoni. Ghislanzoni havia nascido e morava na região do lago de Lecco, nas proximidades de Milão, o mesmo lugar onde Carlos Gomes alugaria uma casa e poucos anos depois, iria edificar sua suntuosa Villa Brasília. Ghislanzoni, que chegara, durante algum tempo a cantar profissionalmente como barítono, era o libretista da moda, autor do texto da Aida verdiana, o mais famoso dos 85 libretos que escreveu.

A linguagem musical que Carlos Gomes emprega na Fosca é ousada, e absolutamente nova. Hoje, musicólogos internacionalmente respeitados, entre os quais cito o inglês Julien Budden, são unânimes em reconhecer que a partitura da Fosca representa o real elemento de ligação entre Verdi e a nova escola verista que, a partir de 1890, com sua forte lufada renovadora,…

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