Sergio Casoy Ópera

A Pérola Rara de Bizet

Les Pêcheurs de Perles

18/04/2010

Sergio Casoy

O olhar misterioso com que Greta Garbo seduz o Napoleão de Charles Boyer no filme Madame Walewska (Conquest, no original) é um dos grandes momentos da história do cinema. Protagonista inesquecível graças à interpretação da mítica atriz sueca, a condessa polonesa romantizada pelos magos de Hollywood existiu realmente, e foi um dos grandes amores de Napoleão Bonaparte. Sabemos que Marie Walewska deu um filho natural ao imperador dos franceses em 1810.

Nascido na Polônia com o nome de Alexandre Florian Colonna, o filho de Marie e Napoleão herdou o título de Conde Walewski. Naturalizou-se francês e, após servir o exército, tornou-se diplomata. Sua brilhante carreira ganhou grande impulso quando seu primo Luis Napoleão, presidente da segunda república, se autoproclamou imperador com o título de Napoleão III e o nomeou para o cargo de Ministro das Relações Exteriores da França. Anos depois, o Conde Walewski seria guindado a Primeiro-Ministro do Império.

Apaixonado pelas artes – quando moço, tinha escrito peças de teatro, uma das quais em colaboração com Dumas pai -, o conde era membro influente da Académie des Beaux-Arts, entidade que  administrava o cobiçado Prix de Rome. Essa premiação contemplava, entre outros artistas, jovens compositores, que ao vencer um concurso anual, ganhavam o direito de aperfeiçoar-se na Académie de France, instituição de belas-artes que o governo francês mantinha em Roma.

Walewski também amava a ópera. Uma de suas preocupações era proporcionar aos jovens compositores que voltavam de Roma a possibilidade de desenvolver seus talentos profissionalmente no teatro lírico. Por isso, um dos últimos decretos que firmou antes de deixar o ministério em 1863 dotava o Théâtre Lyrique de Paris de um subsídio anual de cem mil francos. Essa vultosa quantia deveria ser empregada por Léon Carvalho, o diretor do teatro, para encomendar anualmente uma nova ópera a um compositor francês detentor do Prix de Rome, encenando-a a seguir.

Georges Bizet, então com 24 anos, foi o primeiro escolhido. Ao voltar de Roma, esse jovem compositor parisiense, excelente pianista, granjeara rapidamente uma respeitada reputação pela imensa facilidade com que lia intrincadas partituras orquestrais à primeira vista e efetuava suas reduções para piano, num nível de qualidade que até então só tinha sido atingido por Mendelssohn e Liszt. Não fosse a visão de Walewski e a escolha de Carvalho, é muito provável que Bizet acabasse se dedicando somente àquela atividade, e o mundo jamais viesse a conhecer óperas como Les Pêcheurs de Perles e Carmen.

O universo da ópera não era estranho a Bizet. Ainda aluno do Conservatório de Paris – onde estudou contraponto com Gounod e composição com Fromental Halévy, seu futuro sogro –, ele compôs, em 1855, La maison du docteur. Em 1857, venceu um concurso proposto por Offenbach com uma opereta, Le Docteur Miracle. Já em Roma, para cumprir um regulamento que o obrigava a enviar a Paris uma composição por ano, Bizet escreveu em 1859 a ópera-bufa Don Procopio. Em 1862, tratativas com o Neues Theater de Baden-Baden levaram-no a aproximar-se do estilo grand-opéra com a composição de Ivan IV, mas a produção acabou não se materializando. Ivan teria de esperar por sua estréia até meados do século XX.

Foi apenas com o contrato oferecido por Carvalho em abril de 1863 que a carreira profissional do Bizet operista realmente teve início, embora aos trancos e barrancos. Para ganhar tempo, o afoito diretor do Lyrique já havia encomendado a Eugène Cormon e Michel Carré um libreto chamado Leïla, ambientado no México. Não sabemos quais os motivos que levaram os poetas a conduzir a linda sacerdotisa velada da América para um Ceilão imemorial, ainda não conspurcado pela presença de europeus. Além de alterar a ambientação da ópera, trocaram também seu título, que passou a ser Les Pêcheurs de Perles. É provável que a alusão ao México criasse um certo desconforto entre as platéias parisienses ou incomodasse a censura, num momento em que um capricho de Napoleão III, ao resolver apoiar o arquiduque austríaco Maximiliano  em seu intuito perverso de conquistar o México à força e tornar-se seu imperador, enviara os jovens soldados do exército francês para combater as tropas de Benito Juárez.

De qualquer maneira, o Ceilão preencheria o desejo da ambientação orientalista e exótica que fazia parte dos argumentos das óperas francesas há muitos anos, e que naquele momento se via novamente estimulado na imaginação do público pelo recrudescimento da expansão colonial européia em territórios africanos e asiáticos. É uma vertente que produziria óperas como L’Africaine de Meyerbeer, Lakmé de Delibes, Le Roi de Lahore e Thais, de Massenet e Samson et Dalila de Saint-Säens, entre outras.

Certo de que um compositor principiante não teria competência para julgar adequadamente a qualidade dramatúrgica de um libreto, Léon Carvalho sequer se deu ao trabalho de consultar Bizet acerca do texto ou pedir sua aprovação. Deu-o como fato consumado. Parece que fosse senso comum que, para despertar a inspiração latente de um operista iniciante, o texto deveria vir recheado da máxima quantidade possível de situações melodramáticas convencionais e conhecidas, permitindo que a partitura fosse construída a partir de modelos facilmente reconhecíveis pelo público. Isso fica evidente no comentário de Auguste de Rovray publicado em Le Moniteur Universel uma semana após a estréia acontecida em 30 de setembro de 1863:

“Tal como é este poema de Os Pescadores de Pérolas, o Sr. Bizet deve considerar-se afortunado em tê-lo obtido, e tê-lo obtido absolutamente grátis. A cavalo dado, não se olha os dentes.”

Mas a verdade é que os libretistas exageraram na dose, e se a música de Bizet não fosse magnífica como realmente é, o poema teria levado a ópera ao total esquecimento. Os Pescadores de Pérolas pertencem àquela categoria de óperas – na qual se incluem I Puritani de Bellini, o Príncipe Igor de Borodin e La Rondine de Puccini – cujo libreto raquítico é plenamente compensado pela inventividade melódica e pela beleza da música vocal, únicas responsáveis pelos seus sucesso e permanência no repertório.

Há um excesso de lugares-comuns em Os Pescadores de Pérolas, a começar pelo tema da sacerdotisa dividida entre os votos religiosos e o amor carnal, já…

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